As bases criativas de O Outro Lado do Paraíso não surpreendem ninguém. Assim como fez com Amor à Vida, o autor Walcyr Carrasco "inspirou-se" em filmes, livros, novelas e séries de TV de uma forma quase literal e agora continua seu caminho de reinterpretações de velhos recursos dramáticos que já conhecemos muito bem. Não é difícil encontrar inúmeras """referências""" (e bota-lhe aspas nisso) de outras histórias nela. De uma coisa não podemos reclamar: a trama está sempre em movimento e cheia de grandes viradas. Porém, as motivações para que a novela ande são o ponto mais delicado.
Nos últimos capítulos, por exemplo, a vilã Sophia (Marieta Severo) seguiu sua trajetória como serial killer e tratou de despachar mais uma personagem para o além a tesouradas. A prostituta Vanessa (Fernanda Nizzato) foi vítima da megera porque era testemunha do ataque da vilã à sua vítima anterior, Laerte (Raphael Vianna). Enquanto isso, Elizabeth (Gloria Pires) finalmente voltou a usar sua identidade original após ser surpreendida pela antiga família em pleno julgamento no qual era acusada de matar Laerte e defendida por Adriana (Julia Dalavia), sua filha (sem que nenhuma das duas soubesse do parentesco, inicialmente). A ex-Duda teve problemas de saúde por conta da emoção de rever a filha, o ex-marido e a amiga, sendo que esta última era cúmplice do sogro Natanael (Juca de Oliveira), que foi quem obrigou a moça a se fingir de morta. Agora, Natanael tenta dar cabo da vida de Elizabeth com as próprias mãos. São momentos de fortes emoções, mas que trazem uma grande incoerência.
Afinal, se Sophia e Natanael são tão ruins que são capazes de matar, por que é que não fizeram isso antes? Se Sophia tivesse matado Clara (Bianca Bin) logo de cara, não estaria agora enfrentando a fúria vingativa da mocinha. Interná-la num hospício era o mesmo que deixar uma bomba-relógio pronta para explodir. E se Natanael tivesse mandado matar a nora, ao invés de obrigá-la a se fingir de morta, não estaria, agora, presenciando o retorno dela. Claro, se a coisa tivesse acontecido de outra forma, não haveria novela. Mas, sem dúvidas, falta coerência na trajetória de ambos. O autor deveria ter, ao menos, criado um motivo mais forte que justificasse o fato de os vilões terem preferido pôr em prática seus planos mirabolantes contra as protagonistas da novela, ao invés de simplesmente matá-las. Mas isso não aconteceu. Agora, ficam as pontas soltas. Uma filha não lembrar de sua mãe, como é o caso de Elizabeth e Adriana, também é inconcebível. Pense: Adriana tinha uns 10, 11 anos quando sua mãe "morreu". Idade suficiente para ter uma ótima lembrança, não é mesmo? Fora isso, havia fotos, vídeos e coisas do tipo. É impossível esquecer. Isso foi um furo grande demais explicado de maneira tosca.
Por mais que seja uma novela, é difícil "voar" e digerir situações como essa (entre tantas outras da trama, que se listasse aqui ficaria horas escrevendo) sem causar um certo humor involuntário. A preguiça de planejar uma trama que seja coerente com a linguagem visual contemporânea muito bem imprimida pela direção de Mauro Mendonça Filho jogou a novela numa contradição artística bizarra. É como se o texto não tivesse nenhum compromisso com a coesão do que quer dizer e o resultado dessa falta de intelecto é uma série de diálogos didáticos e grosseiros que até querem se fazer de importantes e diretos, mas que só são toscos e pobres. As decisões são tomadas por vontade e não por ação de circunstâncias implantadas com a inevitabilidade necessária para que um "destino" nos pareça real e emotivo.Os problemas avançam para os outros núcleos que sofrem da mesma falta de sutilezas. Alguns diálogos são construídos de modo tão pouco naturalista que soam escritos por alguém que começou a escrever dramaturgia ontem. O caso da anã vivida por Juliana Caldas é o mais perturbador nesse sentido. É claro que evidenciar o sofrimento e o desajuste de uma pessoa de baixa estatura rejeitada pela mãe é importante, mas tudo fica superficial e barato quando essas conversas entre Estela e Sophia parecem conversas travadas entre Cinderela e a Madrasta Má. Ao invés de escolher mostrar uma mulher pequena com alma grande, decidida, forte e ativa na vida, Carrasco escolheu apresentar uma mulher pequena com alma menor ainda, viciada em vitimização e discorrida na história como se fosse revolucionária, disputada por dois lindos homens. Virou uma chatonilda! Essa vilania chapada, aliás, é um problema sério da novela. A socialite vivida por Fernanda Rodrigues durante o período de empregada doméstica de Clara parecia uma vilã mexicana daquelas que usam até tapa-olho. E o que dizer dos impropérios de Nádia (Eliane Giardini)? Se o objetivo era discutir o racismo e causar uma conscientização através dela e Raquel (Erika Januzza), falhou miseravelmente. Soa mais como algo gratuito, feito puramente para chocar quem assiste.
E o que dizer do núcleo de Samuel (Eriberto Leão)? Inicialmente, a vida dupla do psiquiatra era contada em tom dramático, pois ele sofria com a falta de coragem de viver sua real natureza e transformava suas frustrações em comportamentos homofóbicos. Agora assumido e posto à força para fora do armário na vingança esquemática e previsível de Clara, o tom de seu núcleo mudou e agora virou uma espécie de Zorra Total. Walcyr jogou por terra duas temáticas muito interessantes: homossexuais que se escondem em relacionamento de fachada e que usam de atitudes homofóbicas para esconder sua real condição e a de mulheres que se descobrem casadas com um gay. Isso não tem graça. É um drama, assunto sério. Carrasco, no entanto, preferiu seguir o caminho mais fácil e tratou de pisar fundo na caricatura. A cena em que Suzy (Ellen Roche) descobre a verdade, por exemplo, já foi de um pastiche constrangedor, da "forçação de barra" vista no flagra, passando pelo diálogo infantiloide que beirava o ridículo. Até um "cala a boca já morreu" foi disparado por Suzy, para se ter uma ideia do nível de maturidade do texto. E a tendência é que a trama descambe ladeira abaixo. Samuel e Cido (Rafael Zulu) foram morar juntos, na companhia de Adnéia (Ana Lúcia Torre). E Suzy, ao se descobrir grávida, também voltará a viver com Samuel, levando também a antiga noiva de Cido. Os quatro vivendo sob o mesmo tempo transformarão o núcleo numa espécie de "novela paralela", onde o humor raso característico de Carrasco será usado à exaustão. Deus me defenderay!
Para e pense: quantas vezes você já ouviu... Nádia dizendo "aquela preta" e "não sou racista"? Estela reclamando "Você fala isso só porque eu sou anã"? Aquela prostituta lá do bordel que eu nem sei o nome falando que é "moça pura e virgem"? Clara jurando que vai se vingar do psiquiatra, do juiz e do delegado e que "Patrick é um dos melhores advogados criminalistas do país"? Sophia dizendo "não posso perder as esmeraldas"? Suzy chamando Samuel de "tigrão" (agora, "tigresa") e Cido zoando Adneia de "mãe de bicha"? Ou "Marcel que caiu do céu" e "Pronto, falei!" naquele núcleo afetadísssimo do salão? É irritante essa mania do autor de colocar frases de efeito ou bordões repetidos à exaustão na boca de seus personagens. Tem que ser tudo desenhadinho, repetido dezenas de vezes, do mesmo jeitinho infantilóide, para que a "mensagem" seja captada e entendida como se deve; como se o telespectador fosse idiota.
Bianca Bin se esforça, mas, coitada, Clara parece um androide e a vingança da protagonista nem de longe tem a mesma elegância que uma Emilly Thorne da vida (ou até mesmo de uma Nina). Grazi Massafera, cuja Lívia foi anunciada como vilã, simplesmente não aconteceu. Marieta Severo tenta torcer o texto até ele deixar escorrer algo que se aproveite, mas é difícil. Rafael Cardoso luta para dar alguma dubiedade interessante ao seu Renato, mas o texto rasteiro e previsível não permite. Glória Pires parece visivelmente frustrada com uma personagem que não faz sentido. E ver Fernanda Montenegro servindo de oráculo-cego ("As vozes me disseram") é lamentável. Lima Duarte ainda consegue defender seu Josafá com uma sensibilidade notável. E é preciso admitir que o trabalho de Sérgio Guizé como Gael é surpreendentemente bom, considerando o texto tão rasteiro. Alguns sites começaram a divulgar que ele deve passar a ser mocinho e sua fase de sofrimento na cadeia foi um indicativo disso. Se a notícia de que ele deve passar por uma espécie de "exorcismo" for confirmada, o estrago promovido por O Outro Lado do Paraíso já será definitivamente leviano. O agressor de mulheres só bate porque bebe e desperta um "encosto", a culpa não é dele… Um precedente terrível em um país com números alarmantes de violência contra a mulher.
Acredito que a altíssima audiência da novela se dá porque o autor escolheu como par romântico a catarse e o maniqueísmo, sem o benefício da dúvida, o que fisga telespectadores menos exigentes que só querem se distrair em frente a TV. Muito comum em histórias infantis em função da necessidade de se estabelecer conceitos com inequívoca clareza. Já para seres humanos com idade mental superior a 14 anos... De uma falta absoluta de sutileza e uma visão infantilizada da vida, Carrasco promove mil e uma reviravoltas em sua história, mas mandando a lógica e o discernimento às favas. Confunde polêmica com sensacionalismo; confunde verdade nua e crua com grosseria; confunde licença poética com escárnio e subestimação.