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sábado, 1 de outubro de 2016

Velho Chico: tecnicamente linda e perfeita, dramaturgicamente irregular e angustiante



Um espetáculo em forma de novela. Assim podemos definir Velho Chico, que chega ao fim entrando para a história como uma das novelas mais belas e inspiradas da nossa dramaturgia. Pelo menos, esteticamente falando sim. Ao apostar num texto sensível e cheio de metáforas e crítica social e numa direção que traduziu tais metáforas imprimindo uma estética barroca e lúdica, a transformaram num feito cinematográfico que não deixou a desejar a nenhuma produção hollywoodiana. É digna de ganhar o Emmy (anotem o que digo). Entretanto, deixando a mensagem visual de lado, novelisticamente falando, Velho Chico se mostrou muito irregular.

A primeira fase de Velho Chico foi impecável, marcada pela harmonia do lirismo do texto dos autores (de autoria de Benedito com sua filha Edmara Barbosa e seu neto Bruno Luperi) com o estilo grandioso e nada convencional da direção de Luiz Fernando Carvalho. Houve uma identificação natural com os personagens. O telespectador pôde vivenciar o início da rivalidade entre as famílias Sá Ribeiro e Dos Anjos, o descontentamento do jovem libertário e idealista Afrânio com o destino de coronel que lhe foi imposto contra a sua vontade, chorou a morte de figuras queridas e íntegras como Capitão Ernesto e Belmiro, torceu por Leonor até o último segundo da sua vida, do mesmo modo como se empenhou em torcer para Iolanda e Afrânio e também sofreu junto de Maria Tereza e Santo ao serem abruptamente afastados.


É bom deixar claro que Benedito Ruy Barbosa nunca prometeu uma trama cheia de reviravoltas e seguiu seu estilo que fez tanto sucesso em PantanalO Rei do Gado Renascer. Mas, mesmo dentro do seu estilo e num ritmo mais lento, essas tramas tinham uma narrativa mais interessante e atrativa na primeira fase. O público, de fato, se envolveu, criou laços e empatia e isto foi a razão fundamental da não aceitação plena da segunda fase de Velho Chico.

O erro mais evidente na troca de fases se deu na figura do protagonista Afrânio, que tornou-se o Coronel Saruê, uma figura bonachona e caricata que flertava com o cômico. Nada tinha a ver com a persona dramática que viveu grandes conflitos em sua fase jovem. Antonio Fagundes assumiu o personagem (tão bem interpretado por Rodrigo Santoro) no piloto automático, repetindo jeitos e trejeitos de outros papéis seus (uma mistura de Juvenal Antena com Carlos Mezenga). Não havia nenhum resquício do jovem Afrânio ali, parecia outra pessoa. Assim, ficou difícil se envolver e embarcar nesta nova trama como uma continuação direta da fase anterior.

Ao mesmo tempo, Velho Chico também causou, a princípio, estranheza com uma mensagem visual antiquada, anacrônica, confusa e inverosímel. A impressão é que a novela estava perdida no tempo. O tom fantasioso na primeira fase (ambientada no final dos anos 60) não causou tanto estranhamento porque se passava numa época bem propícia para a exploração do lado lúdico do Luiz Fernando Carvalho. Depois, avançou para o ano de 2016. Porém, apesar de ter seguido uma cronologia, a trama mergulhou em um universo paralelo completamente datado e atemporal, com carros, figurinos e instrumentos que não condiziam com a atualidade.



E se o ritmo da história na primeira fase já era lento, na segunda, então, se mostrou arrastado e cansativo. Quando a trama pôde explorar os encontros e desencontros do casal Santo e Tereza, que era o chamariz principal, estranhamente, não o fez. Essa demora para que os dois se reencontrassem acabou tirando a força do casal e da trama. Com o tempo, a trama política envolvendo questões rurais foi ganhando tal força que, em determinado momento, se tornou o único assunto da história, invalidando completamente a alegação de Silvio de Abreu para o adiamento de A Lei do Amor (que estava cotada para suceder A Regra do Jogo, mas foi adiada porque teria um excessivo foco na política, que poderia ser prejudicada pelas eleições municipais). Sem romances entre os personagens e um inflamado texto político agrário, a novela andou em círculos, se apoiando apenas em interpretações impecáveis e viscerais, que, vistas separadamente do conjunto da obra folhetinesca, foram o grande destaque da trama.

Ah, e que senhor elenco, né? Enxuto, um dos melhores e mais fabulosos da história da teledramaturgia! Todos os atores, dos protagonistas aos coadjuvantes, ofereceram ao telespectador atuações consistentes, com muitos momentos magistrais. Até mesmo aqueles que foram criticados no início (como Antonio Fagundes) se redimiram dos erros e saíram de cena sob aplausos. Falei sobre todos os atores e as atrizes que brilharam na trama bem AQUI.

A discussão da agricultura sustentável e comunitária deu visibilidade a um tema pouco explorado na teledramaturgia recente. Ainda que não tenham gerado grande mobilização como em outras novelas do Benedito, os diálogos dos empreendedores rurais de Velho Chico serviram para iniciar a conscientização de milhões de pessoas que nunca tinham ouvido falar do assunto.


Com o tempo, alguns elementos que estavam incomodando foram suavizados ou concertados; outros, acabamos nos acostumando. Velho Chico só saiu de seu leito plácido quando o texto conseguiu equilibrar o folhetim com as questões sociais tratadas. Quando Santo e Tereza finalmente se reencontraram e os segredos do passado vieram à tona (como a origem de Miguel, filho do casal), provocando novos conflitos entre as famílias. A partir daí, a trama entrou numa crescente com ganchos, embates, sequências e diálogos mais rápidos, de tirar o fôlego.

Só acho que faltou um maior alívio cômico, aquele momento em que o telespectador respira entre um drama e outro. Em vários momentos, diante de tanta tragédia e sofrimento, a novela se tornou angustiante e passou aquela sensação de tristeza exagerada. Do início ao fim, Velho Chico sempre teve um clima meio sombrio. Os personagens viviam em constante estado de tristeza, ódio e desgraça, em penúria sentimental, sem vida pulsante, todos bem densos em dramaticidade e escassos de bom humor. Infelizmente, tais sequências ganharam cores ainda mais tristes quando encontraram reflexos na vida real. A trágica morte de Domingos Montagner, afogado no mesmo rio que dá nome à novela, misturou-se aos momentos tristes finais, fazendo Velho Chico entrar numa espiral ainda mais melancólica e pesada do que já vinha apresentando.

A perda do protagonista na reta final recebeu uma solução dramatúrgica digna e poética. A câmera subjetiva fazendo as vezes do olhar de Santo (operada pelo cinegrafista Leandro Pagliaro), supriu, na medida do possível, a ausência do personagem e, claro, serviu como uma bela homenagem ao ator. Os autores e o diretor artístico tiveram sensibilidade e criatividade.


Aposta da Globo para refrear a maré de baixa audiência no horário nobre, Velho Chico, porém, não foi nenhum estouro: sai de cena com média geral de 29 pontos na Grande São Paulo, apenas um ponto a mais que a antecessora, A Regra do Jogo. Ainda assim, acompanhar os cenários deslumbrantes às margens do Rio São Francisco refrescou a visão de quem estava cansado de folhetins urbanos no eixo Rio-São Paulo. A Globo não produzia uma trama rural na faixa das 21h havia quase 15 anos. Ainda assim, também é interessante observar que Velho Chico não se descaracterizou em momento algum por números no Ibope. Venceu a arte!


Fotografia, atuações, trilha sonora/incidental (uma das melhores de todos os tempos, cujas músicas conversavam diretamente com a história contada e deixava qualquer um arrepiado) e direção impecáveis, mas que no rótulo de trama das nove rodaram tão sem ritmo que não funcionaram. Velho Chico foi uma trama tão requintada e diferentona que tinha que ser vista por uma ótica mais teatral e poética e menos novelística. Talvez, se mostrada em forma de minissérie ou quem sabe no horário das seis, como estava programada inicialmente, teria sido mais interessante. De qualquer forma, fugir do óbvio e do convencional de vez em quando faz bem.

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