Não perca nenhum dos nossos posts

sábado, 24 de setembro de 2016

Inovadora, ousada, inteligente, imprevisível, polêmica, reflexiva... Justiça é a melhor coisa que a TV já fez nos últimos anos!


Do texto à direção, passando pela performance dos atores, fotografia, figurino, maquiagem, cenários e trilha sonora. Tudo esteve em seu devido lugar em Justiça, série que chegou ao fim ontem (23) e que se traduz na melhor das melhores produções que a televisão brasileira já realizou nos últimos anos (até o momento, sem dúvidas, foi a melhor produção do ano na TV).


De Manuela Dias e direção final de José Luiz Villamarim, Justiça primou por diálogos precisos, envolventes e comoventes e câmera posicionada do ponto de vista do protagonista de cada história, sem ocultar seus coadjuvantes, sem malabarismos, sem pretensões revolucionárias. A perspectiva foi a mais realista possível. Coisa de fazer o telespectador se esquecer de ir ao banheiro, de atender ao telefone, de responder a qualquer outro chamado que não viesse da tela. Até tuitar foi difícil, tamanha a resistência que se tinha em desviar os olhos daquele foco.

Justiça mostrou um jeito diferente de se ver TV ao fugir da lógica da narrativa linear, que mostra um capítulo após o outro, seguindo a ordem dos dias da semana. A cada dia da semana, foi apresentado ao público uma história diferente e que só teve continuação na outra semana. Embora tenha sido exibida quase diariamente (segunda à sexta, com exceção da quarta), cada história da série teve apenas cinco episódios. Mas não é só isso. A grande sacada da série é que as histórias se interligavam. O personagem principal da história de segunda, por exemplo, virou o coadjuvante da história de sexta. Uma mesma cena poderia ser exibida ao longo de toda semana (como o atropelamento da Beatriz), mas sempre de ângulos diferentes a da cada história.


Além disso, havia aparições de personagens de outras histórias ao fundo, como meros figurantes. E com essas presenças dos personagens de uma história como coadjuvantes de outra, acabamos recebendo pistas sobre os próximos acontecimentos. Ou seja, a própria série dava spoilers de si mesma. Alguns foram sutis. Outras cenas se repetiram ao longo da semana e só vieram ter sentido no seu dia da semana. E algumas ainda revelaram coisas importantes aos telespectadores mais atentos. Tome como exemplo o episódio dessa segunda (19). Enquanto se mostra o enterro de Vicente, vimos, ao fundo, Firmino enterrando sozinho alguém num túmulo e, em outro, Antenor e Téo falando com repórteres, dando a entender que alguém importante daquelas duas outras histórias também morreria (e, de fato, morreram Osvaldo, irmão estuprador de Firmino, e Vânia, esposa de Antenor). Essas indicações foram interessantes porque nos ensinam que não é só de não saber sobre a história que a narrativa é construída. Uma trama tem tantas nuances e tantas variáveis que pode ser interessante mesmo que você tenha sabido de um elemento importante. Saber que um personagem morre, por exemplo, não te conta como ele morre, porquê ele morre, quais as implicações dessa morte e etc. E esse elementos são tão (ou mais) importantes para uma história do que a surpresa da morte em si.

Racismo, estupro, corrupção, negociatas, ocultação de bens ("laranjas"), delação premiada, prostituição, eutanásia, tráfico de drogas, crime passional, assassinato de animal, abuso de poder... Nunca antes se viu tantos temas polêmicos sendo retratados numa mesma produção.


Também merecem elogios a direção de Villamarim, que explorou o talento dos atores e soube dar a tensão necessária a cada sequência, a ambientação em Recife, mostrando as mais diversas nuances da capital pernambucana e fugindo da dicotomia Rio-São Paulo, e a trilha sonora, mesclando boas músicas nacionais e internacionais, como as versões de Hallelujah (de Leonard Cohen, gravada por Rufus Wainwright), Risoflora (de Chico Science, na versão de Elba Ramalho), Revelação (de Fagner), Anunciação (de Alceu Valença), Dona da Minha Cabeça (Geraldo Azevedo), O Que Será (À Flor da Pele, clássico de Chico Buarque) e Crua (do pernambucano Otto). As músicas, inclusive, ao contrário do que quase sempre acontece nas novelas, não serviram apenas como pano de fundo, mas como parte da narrativa da história.

Como nem tudo são flores, Justiça também cometeu deslizes: houve algumas inverossimilhanças e erros de cronologia e na condução das histórias (como a perda do protagonismo de dois deles). Confira abaixo minha análise de cada uma das histórias.

História de Elisa e Vicente (a mais trágica e impactante)


justica Mãe se apaixonar pelo assassino da filha é o grande absurdo de Justiça

Muita gente achou a história da Elisa em Justiça sem fundamento pelo fato dela ter se apaixonado pelo assassino da própria filha. De fato, foi uma situação bizarra e bem mórbida. Mas, por mais estranho que possa parecer, o envolvimento dos dois, apesar de ter sido muito corrido (faltou um senso de tempo de espera da parte de Vicente, que nem esperou a mãe de sua ex-noiva se recuperar da notícia de sua saída da prisão e já foi ao seu encontro, forçando várias tentativas de perdão), foi algo bastante crível quando pensamos que não estamos no controle de nossos sentimentos e estamos sempre à beira dos paradoxos da vida.

Elisa, na verdade, nunca se apaixonou pelo Vicente. Ela foi guiada pelas recordações que Vicente trazia de Isabela e acabou dando brecha para que ele pudesse adentrar cada vez mais em sua vida. Mas depois que ela tomou um choque de realidade, começou a perceber o quão dividida se encontrava. Por um lado, nutria o sentimento de vingança e o desejo de fazer justiça com as próprias mãos contra o homem que matou à sangue frio sua única filha, mas como fazer isso com um homem que ela passou a conhecer e viu que ele estava completamente arrependido de seus atos e ainda por cima já tendo constituído uma família? Esse dilema moral é que acabou por dar o norte da personagem, maravilhosamente bem interpretada por Déborah Bloch. Jesuíta Barbosa também impecável, sempre muito bom em papéis introspectivos. E ainda merece menção Marina Ruy Barbosa, que chamou a atenção, numa participação especial, como Isabela.


No último episódio, Elisa procurou se libertar de tudo que sentia. Ela buscava cada vez mais viver sua vida sem ter Vicente por perto, tanto que também desistiu de ser orientadora do mesmo. Ela não superou o ódio que sentia por ele, mas estava disposta a seguir em frente, mesmo que para isso precisasse deixa-lo vivo. Só que o destino costuma pregar peças e eis que ele reservou uma para Elisa. Colocar a vida de Vicente nas mãos dela foi uma cartada de gênio da autora. Para Elisa, a justiça foi feita: ela não chamou a ambulância e deixou Vicente morrer. Aqui, porém,  

O final da história mostrou que a vingança é um ciclo eterno. Ao passo que Elisa finalmente fechou um ciclo em sua vida e conseguiu seguir em frente, a série terminou com Regina (Carla Mardina, que, a medida que foi crescendo na trama, foi brilhando cada vez mais), esposa de Vicente, querendo vingança por acreditar que Elisa tenha tido culpa do que aconteceu com seu marido, por ver nela a pessoa que destruiu sua família, que entrou na vida deles para fazer o mal.

História de Fátima (a melhor e mais emocionante)



Entre injustiças, perdas e separações, Fátima foi a única protagonista que conseguiu se reconciliar com o seu passado fora das veredas da vingança. Através dos acontecimentos que marcaram a dissolução da família de Fátima, vimos como a estabilidade e os laços familiares podem ser desfeitos num piscar de olhos, como vidas podem sucumbir por causa de um átimo.

Fátima foi de uma força, integridade e de um sofrimento que, aliada à interpretação terna e extraordinária de Adriana Esteves, dilacera quem assiste por dentro e nos faz torcer por ela. De todas as quatro histórias, ela foi a que teve a prisão mais injusta e uma vida cheia de desgraças. Todo o seu martírio foi motivado por uma desavença com o vizinho por causa de um cachorro violento e, por causa disso, acabou sendo presa por sete anos injustamente. Ela podia tá cheia de ódio, querendo vingança, mas não. Livre da prisão, a única coisa que Fátima quis foi refazer sua vida, viver em paz com os filhos e refazer a família que se desestruturou na vida nesses seus anos de ausência. Em tempos de desencanto com o país, ver uma mulher tão íntegra como Fátima (sem soar pedante, como certas mocinhas de novela) nos deu ânimo para seguir encarando nosso mundo cão. Além disso, voltando a conviver pacificamente com Douglas, o responsável por toda a sua desgraça, ela provou que ódio e vingança não fazem justiça.

Resultado de imagem para kellen douglas

A cumplicidade entre Fátima, a personagem passiva da injustiça, e Douglas, o sujeito agente da injustiça, foi crível e lindo de se ver. Enrique Diaz conseguiu nos fazer oscilar a todo momento entre amor e ódio pelo seu personagem (terminei amando o Douglas). Leandra Leal também foi um espetáculo como o furacão Kellen. No auge da sua beleza, a atriz deu um show de interpretação com os ensinamentos sensuais da cafetina máster da trama, depois de viver tantas mocinhas (insossas) na telinha. O jovem Tobias Carrieres (Jesus, filho de Fátima) foi uma ótima revelação. Suas cenas ao lado de Adriana Esteves me fizeram chorar litros. Tem futuro.

Acho que a única coisa que faltou nessa história foi um flashback para mostrar o que aconteceu com Jesus e Mayara depois da prisão da mãe e morte do pai. Isso explicaria também o fato de Mayara trabalhar para Kellen sem esta saber quem a garota realmente é. Aliás, Mayara foi a única personagem da segunda história que buscava por justiça. Entretanto, achei isso muito mal construído. Ainda que justificável (afinal, foi Kellen quem convenceu Douglas a plantar drogas no quintal de Fátima), não foi o suficiente para que Mayara tentasse se vingar dela, já que a garota não sabia que a ideia tinha partido da cafetina. Além disso, ela passou sete anos da sua vida trabalhando como prostituta para destruir Kellen e o máximo que conseguiu foi que a patroa terminasse com Celso. Achei fraco. Mayara ter terminado a história na prostituição, mostrou que ela estava se tornando uma Kellen 2 e que gostava realmente do que fazia.

História de Rose (a mais fraca e mal construída)



A história de quinta de Justiça ficou marcada pela perda de protagonismo da Rose. Infelizmente, ela ficou alçada a segunda mão, uma vez que a "justiça" que a história buscou não era para ela e sim para a amiga, Débora. Sua história inicial foi uma prisão por porte de drogas que arruinou seu futuro (numa abordagem corajosa sobre o racismo). Entretanto, após a temporada na cadeia, Rose não voltou querendo se vingar da amiga, responsável em partes por sua prisão, por ter se omitido a voltar à festa que estavam para defendê-la; nem de Douglas, o policial que a prendeu agindo de forma bem racista ao separar os brancos dos negros. A partir do segundo episódio dessa história, a ação e o protagonismo da trama passou para as mãos de Débora: esta sim, em busca de justiça, para pôr na cadeia Osvaldo, o homem que lhe estuprou.

No meu ponto de vista, foi um deslize muito grande do roteiro promover esse deslocamento de protagonismo. Havia tanto para ser explorado na história de Rose: acertar as contas com Douglas, recuperar o seu sonho em ser jornalista, lutar pelos direitos da comunidade negra e contra à violência policial, mostrar a realidade dura da reintegração de uma ex-presidiária pobre e negra na sociedade... Porém, infelizmente, a sua trama (que só existiu no primeiro episódio) foi reduzida a uma subtrama, que focou num triângulo amoroso insosso com Celso e Kellen.


A história de Débora tinha tudo para fazer um serviço social bem interessante, de debater o estupro e como isso pode influenciar na vida de uma pessoa. Mas a cada evolução da história ficou cada vez mais difícil defender Débora, já que ela estava cada vez mais no fundo do poço. Na realidade, ela já estava no fundo do poço, só que ela foi cavando cada vez mais. Toda a investigação que ela fez para conseguir chegar até Osvaldo acabou mostrando o quão instável e irresponsável ela estava sendo, tanto é que chegou a levar um bandido para dormir em sua casa (?) e foi enfrentar Osvaldo sozinha e sem estar preparada (??). No auge do seu descontrole, acabou matando-o a paulada. Foi uma cena forte, impactante, que lavou a alma da personagem e do público. Débora se vingou do seu estuprador, mas virou uma assassina, perdeu o marido e a família que teria, se isolou do mundo na sua angústia e obsessão e terminou a história sozinha e fugindo. Com isso, Débora acabou se ferrando muito mais do que Rose, que, após sete anos de prisão, conseguiu tudo aquilo que a amiga sempre quis e não conseguiu: superar o trauma e o rancor, mudar de vida e constituir uma família. Seria essa a "justiça", na visão da autora?

Apesar dos pesares, Luisa Arraes e Jéssica Ellen defenderam bem suas personagens, mostrando que são profissionais que prometem para o futuro. Vladimir Brichta também brilhou e teve o personagem que mais circulou por todas as quatro histórias, sendo uma espécie de "coringa" da autora. Celso é um novo patamar na carreira do ator, após muitos anos fazendo comédia.

História de Maurício (a mais decepcionante)



Confesso que, quando ainda passavam as chamadas, esse foi o episódio de Justiça que mais fiquei ansioso para assistir. Além de ter um tema complicadíssimo e quase nunca abordado na nossa teledramaturgia (a eutanásia), ainda parecia trazer o Cauã Reymond, finalmente, fora da sua zona de conforto vivendo um personagem diferente. Infelizmente, a história de sexta se revelou uma decepção e, assim como a de quinta, ficou marcada pela perda de protagonismo.

No caso de Maurício, ele conseguiu a justiça que tanto queria: destruir Antenor, o homem que atropelou sua mulher, Beatriz (Marjorie Estiano numa participação muito mais que especial), apesar da ação direta ter vindo das mãos da esposa do mau-caráter, Vânia. Mas a quem se importa? O apego que eu tenho com os personagens das histórias anteriores, se desfez com Maurício. Até mesmo na história de quinta, que considero a mais fraca, torci para Débora se vingar do seu estuprador. Já com Maurício, pra mim, sua vingança (mesmo que justificável) tanto fez, como tanto faz. Creio que, além da atuação mediana de Cauã Reymond, o principal motivo para isso tenha sido os caminhos que o personagem trilhou para destruir Antenor, que o fizeram parecer, inclusive, com o próprio. Maurício conseguiu dinheiro de forma suja, se aliou a pessoas que seguem caminhos tortos, tentou matar uma pessoa e se envolveu com uma mulher para atingir outra pessoa, manipulando Vânia de forma canalha para conseguir as informações que queria contra seu inimigo. Não dá para torcer por um personagem desses, né?


A trama de sexta só ganhou força quando a história agressiva do casal composto pelo candidato corrupto Antenor e sua esposa Vânia começou a se sobressair. Eles disparadamente chamaram mais atenção que o protagonista e roubaram a cena. Por mais que o seu papel seja ser enganada por todo mundo, Drica Moraes conseguiu passar a imagem de uma mulher negligenciada, carente, que é amargurada e infeliz com seu casamento e só queria ser amada. Fez a gente sentir pena dela e torcer para que ela se livrasse do marido canalha e terminasse feliz (o que não aconteceu, já que ela morreu tragicamente). Antenor também foi um personagem muito rico dramaturgicamente, construído com maestria por Antônio Calloni. De bom mesmo, só todo o contexto político que cercou a trama e veio bem a calhar no momento que estamos.

Outro ponto sofrível da trama foi a desconstrução do tempo cronológico da série, ainda no enredo de 2009, pois vimos a decisão de Beatriz em morrer e Maurício sendo preso após atender ao pedido da amada logo no início para só depois ("três dias antes") vermos o acidente acontecer. Isso acabou estragando o grande clímax do episódio e jogou foi um balde de água fria na cabeça do telespectador. Também houve um erro gravíssimo de cronologia. Em uma mesma noite, houve o atropelamento de Beatriz, a vinda do socorro, a internação, o diagnóstico médico de que ela estava tetraplégica, a decisão dela de morrer, a eutanásia em si, a chegada da polícia, a prisão de Maurício e a ação na delegacia. Inverossímil e muito corrido.

No final, Maurício decide ir embora de Recife e no caminho encontra Débora. Ela pede carona e ele para lhe perguntando para onde ela vai. Ao responder que vai para qualquer lugar, Maurício abre a porta do carro e os dois vingadores que se deixaram afundar nessa obsessão seguem juntos. Seria esta cena apenas o final feliz dos dois ou uma pista de que teremos Justiça 2?



A exibição de Justiça endossa que o que o público quer, sempre e sempre, acima de tudo, é uma boa história, bem contada, bem dirigida, bem escrita e bem atuada. Pode ter efeito especial e que tais, mas, sem comoção, sem os dramas humanos, a audiência não comparece em peso. Justiça teve o raríssimo mérito de combinar audiência com qualidade, que traz o público para dentro da tela e o faz pensar, se questionar, se colocar no lugar dos personagens, refletir sobre suas ações. E nos mostrou, com Recife escancarado na tela, uma vida como ela é que se antecipa às tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, fincadas justamente nas tragédias gregas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bora comentar, pessoal!

Poderá gostar também de

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...