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segunda-feira, 27 de junho de 2016

A Favorita: o apogeu da genialidade e da ousadia de João Emanuel Carneiro


"Duas amigas que se tornaram rivais. Uma das duas cometeu um crime e está mentindo. São duas versões de uma mesma história. Quem, afinal, está dizendo a verdade? Flora ou Donatela?". Foi com essa premissa que João Emanuel Carneiro revolucionou a teledramaturgia brasileira.


Donatela (Claudia Raia) perdeu os pais num trágico acidente e acabou sendo adotada pela família de Flora (Patrícia Pillar), que era bem humilde. Quando crianças, as duas eram melhores amigas, ao ponto de, na juventude, formar uma dupla sertaneja, Faísca e Espoleta, administrada pelo caça-talentos Silveirinha (Ary Fontoura) e que chegou a fazer razoável sucesso na época. A parceria, porém, foi interrompida após as duas conhecerem os amigos Marcelo e Dodi (Murilo Benício), de quem se tornaram noivas. Donatela casou-se com Marcelo, filho do poderoso Gonçalo Fontini (Mauro Mendonça), dono de uma indústria de papel e celulose, enquanto Flora tornou-se esposa de Dodi, que era pobre e trabalhava na firma do pai do amigo.

A felicidade de Donatela e Marcelo, porém, durou pouco. O primeiro filho do casal, Mateus, foi sequestrado com seis meses de idade e nunca mais apareceu. Desde então, os dois passaram a se desentender com frequência. Flora, por sua vez, separou-se de Dodi e, depois, teve um caso com Marcelo. Engravidou dele e deu à luz uma menina, Lara (Mariana Ximenes), o que abalou ainda mais a relação entre Donatela e Marcelo e, principalmente, entre as duas amigas.

No auge da crise da ex-dupla Faísca e Espoleta, Marcelo é assassinado com três tiros disparados do revólver que estava nas mãos de Flora, pega em flagrante. Com base nos depoimentos da manicure Cilene (Elizângela), que presenciou o crime, e do Dr. Salvatore (Walmor Chagas), médico que prestou socorro a Marcelo no hospital e diz ter ouvido ele dizer o nome da mulher que o matou minutos antes de morrer, ela foi presa, condenada e separada de sua filha (na época, com três anos de idade). Donatela, que não perdoa a amiga de infância pela traição e por ter matado o marido, decide criar Lara e, tempos depois, se casa com Dodi.

A história de A Favorita, no entanto, começa bem depois de tudo isso, dezoito anos após o crime, a partir do momento em que Flora sai da prisão querendo provar a sua inocência, acusando a ex-amiga do crime pelo qual ela pagou, e se reaproximar de Lara. Donatela, por sua vez, não mede esforços para impedir que ela chegue perto de Lara, a quem diz amar como se fosse sua própria filha. No caminho das duas, surge o sedutor jornalista investigativo Zé Bob (Carmo Dalla Vecchia), que se envolve com Flora e depois com Donatela. Ele e Lara, mais do que nunca, se tornam o alvo de disputa entre essas duas mulheres que, um dia, foram amigas.


Com referências nas séries americanas e nos filmes de suspense (tanto pela condução da história, quanto pela fotografia escura e cheia de sombras), A Favorita revolucionou a teledramaturgia brasileira ao subverter o esquema folhetinesco tradicional apresentando uma história policial com uma protagonista e uma antagonista em detrimento de uma história de amor com um casal romântico central e em não revelar logo de cara quem era a vilã e quem era a mocinha da história. Durante os 55 primeiros capítulos, a novela girou em torno desse mistério e confundiu o público, que não sabia para quem torcer, pois o roteiro não deixava claro quem era a verdadeira assassina de Marcelo, quem estava mentindo, se Flora ou Donatela.

Ambas tinham versões muito bem convincentes. Donatela afirmava que Flora nutria uma inveja obsessiva por ela e sempre quis tomar tudo que é seu. Ela defende que Flora se casou com Dodi só para poder ficar perto dela e de Marcelo e atrapalhar seu casamento. Mas quando percebeu que, mesmo conseguindo engravidar dele, Marcelo nunca iria se separar, resolveu matá-lo. Segundo Donatela, Flora premeditou o assassinato, mas as coisas não saíram como o previsto. Ela conta que, no dia do crime, saiu de casa, mas voltou ao se lembrar que havia marcado hora com Cilene, sua manicure. Quando chegou, flagrou Flora atirando em Marcelo, o que foi confirmado por Cilene, única testemunha do caso. Depois de atirar em Marcelo, Flora ainda ia atirar nela. Para se defender, iniciou uma briga com a rival e quem pôs fim à luta foi Cilene, que conseguiu imobilizar Flora. Na briga, Flora e Donatela deixaram suas impressões digitais na arma, mas o depoimento de Cilene foi decisivo para condenar Flora. Assim como também o de Dr. Salvatore, que prestou socorro a Marcelo no hospital e garantiu que ouviu ele dizer que foi assassinado pela Flora minutos antes de morrer. De acordo com Donatela, ela e Dodi foram vítimas de Flora e a tragédia os aproximou. Ela ainda garante que ama Lara mais do que tudo nessa vida, que a garota lhe "salvou" no momento mais doloroso da sua vida e que, mesmo ela sendo fruto da traição do marido, decidiu criá-la como se fosse sua por ter se afeiçoada a menina e como uma forma de compensar o vazio deixado por Mateus, seu filho sequestrado.

Já na versão de Flora, Donatela é quem nutria uma inveja obsessiva por ela e sempre desejou tudo o que era seu, inclusive os rapazes com quem se envolvia. Flora alega que Donatela e Dodi sempre foram amantes e tanto ela como Marcelo foram vítimas de um golpe minuciosamente planejado. Donatela teria dado em cima de Marcelo já com o intuito de se casar com o jovem milionário, enquanto Dodi conquistaria Flora para se manter próximo à amante e ao dinheiro que ela passaria a ter. Além disso, o filho sequestrado de Donatela e Marcelo, na verdade, seria filho de Dodi. Para que Marcelo não descobrisse a verdade, o casal teria dado um jeito de sumir com a criança. Como a verdade veio à tona, Flora e Marcelo se aproximaram e redescobriram o amor. Quando Donatela descobriu que Marcelo iria se separar dela e que ela perderia todo o dinheiro que sempre quis, premeditou o assassinato, junto com Dodi. E deu um jeito para que Flora estivesse na casa de Marcelo no momento do crime e pagou para que Cilene e Dr. Salvatore testemunhassem para incriminá-la, o que acabou conseguindo. Segundo Flora, Donatela só criou Lara de olho na herança, já que a garota é a única herdeira de todo o patrimônio dos Fontinis.

Essa indefinição em saber em quem confiar também foi traduzida através dos personagens. Principalmente, pelo casal Irene (Glória Menezes) e Gonçalo, pais de Marcelo e avós de Lara. Irene se tornou a primeira aliada em defesa de Flora, acreditando em sua inocência e fazendo de tudo para reaproximá-la da neta. Ela sempre teve reservas em relação a Donatela, a quem julga ignorante e fútil. Gonçalo, por sua vez, sempre teve uma ótima relação com Donatela e não poupou esforços para afastar Flora de Lara. Um dos dois estava cometendo um erro terrível em defender a assassina do próprio filho. Pedro (Genésio de Barros), pai de Flora, também insiste em dizer que a própria filha é muito perigosa e nem um pouco confiável. A guerra declarada entre a mãe biológica e aquela que a criou deixa Lara abalada e confusa: ela, assim como Zé Bob e o público, não sabe em qual dessas diferentes versões de um mesmo assassinato acreditar.



Entretanto, embora ainda não houvesse uma vilã declarada, todas as evidências do roteiro apontavam Flora como uma mocinha injustiçada. O autor conduzia a trama justamente para que a cara de vítima da personagem conquistasse a confiança de quem assistia. Flora tinha um jeito simples, olhar sofrido, fala mansa e andar arrastado. Usava roupas discretas, sem nenhuma ostentação e até um pouco gastas. Como um anjinho, tinha os cabelos cacheados e loiros. Boa filha, amava e cuidava do pai, mesmo com Pedro a odiando e dizendo para que a filha não valia nada. Com uma história de vida sofrida, tinha uma postura de quem apenas queria se defender e tentar convencer a todos que pagou por um crime que não cometeu. Como não se sensibilizar com o drama de uma ex-presidiária, renegada pelo próprio pai, que tenta reconstruir a vida e luta para provar sua inocência e conseguir o amor da filha? Além disso, tinha como trilha sonora "É o que me interessa", de Lenine, uma música linda com um ritmo delicado e sensível.

Já Donatela era uma perua legítima. Metida e, por vezes, arrogante, vivia de nariz em pé e tinha um jeito exagerado de falar e gesticular. Usava um figurino tão espalhafatoso quanto ela: muito brilho, muita joia, muito luxo. Morena, cabelos sedosos e bem cuidados, pisa duro e parece estar pronta para passar por cima de quem atravessar seu caminho, mesmo que para isso tenha que usar de meios controversos. Dona de um gênio forte, tempestuosa, falastrona, vultosamente dramática, politicamente incorreta, de pavio curto, xinga, grita, briga, humilha. Uma dondoca fútil que se acha a dona do mundo, não faz questão nenhuma de trabalhar e adora comprar, gastar, ostentar e esbanjar dinheiro??? Não... Ela jamais poderia ser a mocinha da novela, nunca!

Dessa forma, Flora não se encaixaria de maneira nenhuma no papel de vilã da trama, mesmo quando passou a adotar estratégias tão desonestas quanto a rival para se vingar de Donatela (como convencendo Cilene e Dr. Salvatore a mudarem suas versões do assassinato de Marcelo na base da chantagem). Existe uma linha tênue entre justiça e vingança. Nada de surpreendente, portanto, que a certa altura ela achasse razoável se tornar tão cafajeste quanto a aparente vilã da história para provar sua inocência. Mas bastou um único capítulo para JEC desconstruir de maneira gradual tudo aquilo em que o público foi induzido a acreditar desde o início da novela.


Contrariando os clichês dramatúrgicos, onde a vilã é sempre a rica mimada e a mocinha a pobre batalhadora, o autor apresentou um capítulo recheado de tensão (sua principal característica) e o telespectador viu, após muitas semanas de mistério, a mulher humilde se revelar um demônio quando ficou cara a cara com sua rival, desencadeando novos entrechos e novos mistérios para a trama. Naquele momento, a novela tomava fôlego e caía definitivamente nas graças do público (uma vez que, devido ao início inovador e ao sucesso da tosca Os Mutantes, na Record, a trama enfrentava uma certa rejeição e o Ibope deixava a desejar), virando mania nacional.

A partir do capítulo 56, A Favorita virou outra novela. Ainda mais interessante e envolvente, com a derrocada de Donatela, que passa a ser perseguida por um crime que não cometeu, enquanto a vilã declarada consegue se infiltrar no clã dos Fontinis, dando-se início a um jogo de gato e rato. A partir daí, temos a chance de repararmos uma grande injustiça e finalmente torcer para a verdadeira mocinha da história conseguir provar sua inocência e desmascarar Flora.


Flora enganou a todos direitinho. Ela é uma psicopata clássica, pois por trás de seu jeito doce, carrega uma alma sombria e é capaz das maiores atrocidades. A grande questão é que A Favorita não é uma simples trama sobre a rivalidade entre duas mulheres. Ela é bem mais complexa e foi muito mais além do que isso. Flora amava Donatela. Um amor distorcido, doentio, às avessas. Mas não é um amor lésbico, de uma mulher por outra. Donatela é o motor da vida da Flora, o objetivo dela. Prova disso é que, quando descobre que a Donatela está viva, ela volta a ter a "razão" de viver, passando a persegui-la novamente. Donatela sabe que Flora foi uma menina que tinha medo do escuro e sofreu alucinações. Ela usa, nos últimos capítulos, essa tortura psicológica para assustar a vilã e faze-la confessar seus crimes. A Favorita não é apenas uma história policial, mas sim um drama psicológico. Se Donatela não fosse uma pessoa tão importante para a Flora, a vilã não iria fazer tudo para ficar com o rancho onde ela morava e com tudo o que foi dela. Teria fugido depois de ter ficado com todo o dinheiro dos Fontinis.

Patrícia Pillar, que já brilhava desde a estreia, mostrou sua capacidade cênica e fez de Flora uma das melhores vilãs da teledramaturgia, a partir da emblemática cena em que cai a máscara da víbora. E Cláudia Raia comprovou que sabe fazer drama com a mesma competência que faz comédia. Sua Donatela, que no início estava no comando, sofreu horrores e comoveu o público.


Um grande sucesso, A Favorita cativou a audiência e tornou a personagem de Patrícia Pillar um hit. Até hoje, Flora é uma referência de vilã. E ainda trouxe de volta ao imaginário popular a música Beijinho Doce, criação de Nhô Pai, que na novela era interpretada pela antiga dupla sertaneja Faísca e Espoleta. A música fez tanto sucesso que ganhou remixes na internet, com batidas pop, dance e funk, e a inclusão de frases e bordões marcantes de Flora. Não faltaram elogios ao ritmo alucinante que a trama apresentou, com ótimos ganchos e muitos acontecimentos em cada capítulo, não deixando-a como as famosas "barrigas" nunca.

A Favorita marcou a estreia de João Emanuel Carneiro no horário nobre e carimbou sua permanência no time de autores do primeiro escalão da Globo. Contendo cenas inesquecíveis de suspense (como o macabro assassinato de Gonçalo), várias viradas e uma trama central empolgante, a novela foi um sucesso de público e crítica, tendo em seu elenco grandes nomes como Glória Menezes, Mauro Mendonça, Mariana Ximenes, Ary Fontoura, Jackson Antunes, Murilo Benício e Lilia Cabral, que protagonizaram grandiosas sequências ao longo da trama.

Como eu disse certa vez nessa matéria AQUI, as tramas paralelas é o grande "calcanhar de aquiles" do JEC. Em A Favorita, não foi diferente, tanto é que foram cortadas da nossa edição sem grandes perdas para a história central. Entretanto, não posso deixar de mencionar uma subtrama muito interessante abordada na novela: a violência doméstica contra a mulher, missão dada e cumprida brilhantemente bem por Lilia Cabral, que conseguiu discutir um assunto difícil de ser abordado pela sua fragilidade - e a provável homossexualidade entre mulheres na relação de amizade de sua Catarina com Stela (Paula Burlamaqui). Jackson Antunes vivendo o marido machista Léo foi esplendoroso. Outro destaque foi o personagem Romildo Rosa (Milton Gonçalves), que interpreta um deputado corrupto envolvido no esquema de tráfico de armas. Fora todo embate ético, foi a primeira vez que uma família negra foi vivida numa novela das nove onde a temática do preconceito racial (ou social) não foi abordado como bandeira principal. Não que o racismo tenha acabado, longe disso. Mas, mostrar para o grande público que uma família negra possui outros conflitos inerente a origem racial foi algo inédito - e bem explorado.

Por tudo isso, considero A Favorita a melhor novela do JEC e, sim, bem melhor que Avenida Brasil (que também foi muito boa, é bom deixar claro isso). Desculpaê, Carminha!!!


A Favorita está sendo exibida (num compacto em 54 capítulos) atualmente na nossa página do facebook desde o início de maio e acaba de entrar em sua última semana. Você não pode perder! Clique bem AQUI para acompanhar.


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