Não perca nenhum dos nossos posts

sábado, 30 de janeiro de 2016

A Regra do Jogo é a cara do Brasil

Assaltar um banco é perdoável? E roubar o local onde trabalha para pagar o tratamento de saúde da sua mãe? E furar uma fila? E comprar produtos sem pagar impostos? E matar para sobreviver? Qual o limite entre o certo e o errado? Até que ponto um crime pode ser perdoável? Existe um livre arbítrio? Podemos mudar o destino que está reservado para gente? Antes de responder todas essas perguntas, é importante refletir sobre o que define o caráter de uma pessoa. Em A Regra do Jogo, os personagens criam as suas próprias regras no jogo de acordo com o que acham certo ou não e colocam à prova questões que envolvem a ética, os valores e os limites de cada ser humano na nossa sociedade.

Se eu pudesse descrever A Regra do Jogo em uma só palavra, ela seria ambiguidade. Nesta história, o improvável conduz o desenrolar da trama e nem tudo é o que parece ser. Há os personagens que não são aquilo que dizem ser e outros que se comportam e tomam atitudes inesperadas, cujas explicações estão em um passado cercado de mistérios. É normal que os personagens mudem de lado, trilhem caminhos bem diferentes a cada situação ou, até mesmo, enganem o público por vários capítulos. A regra desse jogo é a sobrevivência, por isso, é difícil saber quem são os mocinhos e vilões dessa história e a todo momento as posições podem se inverter, o que já virou uma marca registrada do autor, João Emanuel Carneiro.

Zé Maria (Tony Ramos) é um desses personagens que enganou muita gente lá no início da trama, inclusive o próprio filho, Juliano (Cauã Reymond). Quem o considerava uma vítima da facção levou um susto ao descobrir que ele era um dos piores bandidos da quadrilha, responsável pelo famoso "Massacre da Seropédica". Entretanto, apesar de ser um assassino frio, Zé Maria tinha um ponto fraco: a família. O amor verdadeiro pelo filho, por Kiki (Deborah Evely) e pela pequena Aninha fizeram com que o bandido virasse uma espécie de herói vingador e se voltasse contra a facção com o objetivo de destruí-la. Para tanto, simulou a própria morte, mudou de aparência e assumiu uma nova identidade, Pedro Vargas. Mas será que um homem que já sequestrou tanta gente, matou dezenas de inocentes, colocou o próprio filho Juliano na cadeia, entre outras atrocidades, é mesmo capaz de mudar?


E o que dizer de Romero Rômulo (Alexandre Nero), o protagonista mais complexo e ambíguo da história das telenovelas brasileiras? JEC conseguiu apresentar com maestria o caráter dúbio do ex-vereador. Até hoje não sei quem ele é e o que ele quer de verdade. Confesso que não sei dizer se ele ama a Tóia (Vanessa Giácommo) ou a Atena (Giovanna Antonelli). Afinal de contas, em que time o Romero joga? Seria um lobo em pele de cordeiro ou um cordeiro em pele de lobo? Mesmo que ele tenha feito algumas coisas boas na vida e tenha salvado a vida de muita gente, não podemos esquecer que o ongueiro foi responsável indiretamente pelo "Massacre da Seropédica", foi capaz de simular vários assaltos e engana todas as pessoas que mais lhe amam. Os ongueiros de morro na vida real e os defensores dos direitos humanos podem ficar meio puto com as ações do moço. Acontece. Tem ONG séria, mas todos nós sabemos que existem sim muitas ONGs de fachada e existem sim defensores que usam dos direitos humanos para protegerem bandidos. Romero até tentou se regenerar, mas vários fatores o empurraram de volta para o mau caminho: a tentação de ganhar muito dinheiro, a pressão de Atena e as ameaças da facção. Será que ainda resta uma esperança para a alma do pilantra?


Que Dante (Marco Pigosi) é o policial mais incompetente da história da teledramaturgia brasileira, disso eu já estou cansado de falar (relembre aqui). Mas será que JEC não quis representar na figura do ingênuo policial a inoperância da polícia brasileira devido aos altos índices de violência registrados em todo o país e uma crítica a violência policial na relação entre ele e Juliano (Cauã Reymond), vítima do abuso de autoridade do policial lá no início da trama, quando eram rivais? A Regra do Jogo apresentou uma série de situações criadas e deixadas pelo caminho, sem muita explicação (relembre aqui), como os assassinatos de Djanira (Cassia Kiss), do delegado Faustini (Ricardo Pereira), do jornalista Dário (Alcemar Vieira), entre outros, que foram totalmente esquecidos. Pode ser um furo no roteiro do autor, mas não deixa de revelar uma realidade do Brasil: a do "ninguém sabe, ninguém viu". Diariamente, ocorrem vários crimes e que demoram anos para serem descobertos (quando são descobertos!) e os culpados serem punidos (quando são punidos!).

E nem as tramas paralelas da novela escapam. A família do Feliciano (Marcos Caruso), por exemplo, tem um pé muito forte na realidade que o povo brasileiro enfrenta todos os dias no sentido dos personagens envolvidos estarem sempre vivendo em crise. O Breno (Otávio Müller) perdeu o emprego e tenta se virar como pode, o Vavá (Marcelo Novaes) não consegue ser um personal com muitos clientes, a manicure Janete (Suzana Pires) idem, a empregada Dinorah (Carla Cristina) não recebe salário... É a personificação do famoso "jeitinho brasileiro". Para o bem ou para o mal.


Atena e Ascânio (Tonico Pereira) protagonizam algumas das melhores cenas cômicas da novela, ainda que esse não seja o propósito principal da dupla. Entretanto, não podemos esquecer que ambos fazem parte da facção e não valem nada. Atena é uma estelionatária que já enganou meio mundo e trambiqueira de mão cheia e Ascânio trazia menores de idade para a facção (inclusive, foi ele que levou Romero para o mundo do crime) e chegou até a matar uma personagem a mando da facção, a Sueli (Paula Burlamaqui), amiga de Atena. Ou ele matava ou a facção matava ele. Podemos dizer que Ascânio matou para sobreviver, então foi perdoável a sua atitude, né? Ou não?

Até o centésimo capítulo, Gibson (José de Abreu) não fazia a menor diferença na trama. Mas JEC estava preparando uma surpresa para os telespectadores. Revelado como o Pai da facção, Gibson cresceu e tornou-se um malvadão digno de entrar para a galeria dos grandes vilões do horário nobre, pois já mostrou que é capaz de qualquer crueldade, inclusive contra a própria família. Tudo, segundo ele, em nome de uma "causa" maior que ele julga certa, como se os fins justificassem os meios. E justificam? As falas reacionárias de Gibson em cena podem ser um choque para o público, mas são como a que ouvimos na vida real de muitos outros elitistas. Além disso, Gibson ser o Pai da facção toca em uma ferida aberta da sociedade: a justiça com as próprias mãos. Isso porque o "coxinha" resolveu criar a facção depois de sofrer um grande trauma no passado, durante um assalto, quando sua casa foi invadida por marginais, que torturaram sua família. Após presenciar o momento de terror, ele resolveu sentenciar os bandidos e contratou Zé Maria para assassiná-los. Ele, por sua vez, arrumou mais capangas, nascendo, assim, a facção. Gibson possui sonhos elitistas de grandeza, como se quisesse dominar todo o país, e criou esse "exército" para tirar toda a "corja" que está no poder. Em um momento de crise política e de puro desencanto da população com o governo corrupto do nosso país, A Regra do Jogo se tornou a cara do Brasil atual.



"É só uma novela", é o que muitos devem estar dizendo. Eu sei. Mas é inevitável traçar um paralelo com o Brasil atual. Até porque novela não é só entretenimento, mas também uma faísca para despertar reflexão no público. O que não chega a ser nenhuma novidade nas obras de JEC. Avenida Brasil, por exemplo, aproveitou bem a situação socioeconômica do Brasil de 2012 para refletir na tela um retrato pitoresco de nossa realidade contemporânea. O fictício bairro do Divino era, na verdade, um microcosmo do Brasil e foi responsável por todo o mega sucesso da novela, que levou diariamente milhões de brasileiros à frente da TV e que repercutiu nas ruas e na Internet. Como em poucos exemplos em nossa teledramaturgia, o brasileiro se viu refletido na trama.

A chamada "nova classe C" retratada na trama fisgou todas as classes. Como em um jogo de certo ou errado, o autor brincou com as nuances simbólicas de ricos e pobres, elaborando uma crítica social muito pertinente, seja através da grã-fina da Zona Sul que fazia pouco caso da figura do suburbano ou no velho-pobre novo-rico que zombava do velho elitismo. Avenida Brasil, além de ter tido uma ótimo história, é claro, retratou a classe média brasileira de forma eficiente e refletiu mudanças na sociedade, afastando-se dos personagens e bairros ricos que geralmente estão no centro das tramas, diferente do novo rico do passado, que queria parecer quem não era e tinha vergonha de falar de onde vinha. Prova disso era a Família Tufão (Murilo Benício), que enriqueceu, mas continuava com o jeito suburbano de ser e construiu uma mansão no Divino só para não se mudarem da zona norte.

Dessa vez, JEC vem retratando o funcionamento de um esquema mafioso entranhado nas camadas da nossa sociedade com a sensibilidade que o jornalismo não alcança ou se recusa a encarar. A similaridade com a realidade atual do nosso país assusta muito. Muitos se sentem instigados em acompanhar, outros ficam incomodados. Estamos vivendo um momento de insegurança, decepção e desesperança com o Brasil. Por isso, talvez seja custoso para a maioria ver o mal se sobrepor tão acintosamente na hora que a mente pede distração. Invariavelmente, A Regra do Jogo só mostra um único final: a cidade literalmente se transformar em uma Gotham City, onde somente um super-herói poderá salvá-la, já que 99% dos personagens não possuem qualquer tipo de princípio.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bora comentar, pessoal!

Poderá gostar também de

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...